sexta-feira, 18 de maio de 2012

Parecer do MP - Subturma 8


MINISTÉRIO PÚBLICO                                                                                 
Procuradoria Distrital de Lisboa
Rua do Arsenal, G, 1100-038 Lisboa


                                                                                            Exmos. Senhores Juízes de Direito do Tribunal
                                                                                                            Administrativo de Círculo de Lisboa


Chegada ao Tribunal Administrativo do Círculo de Leiria a petição inicial que deu início ao processo nº 0687/2012, foi fornecida cópia dessa petição e dos documentos que a instruem a este Ministério Público, nos termos do artigo 85.º/1, CPTA, bem como das contestações da entidade demandada e contra-interessados.
O Ministério Público vem, ao abrigo do nº1 do artigo 219.º da CRP e do artigo 85.º do CPTA, emitir parecer sobre o presente processo, o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:

A)     Das providências cautelares
Há dois tipos de providências cautelares em contencioso administrativo: as conservatórias, nas quais o interessado pretende manter ou conservar um direito em perigo, procurando evitar vir a ser prejudicado por medidas que a administração venha a adoptar; as antecipatórias, onde o interessado procura a adopção de medidas por parte da administração que podem ou não envolver actos jurídicos.
Os pressupostos para a concessão das providências cautelares são, nos termos do artigo 120º, os critérios do periculum in mora e do fumus boni iuris. O primeiro, não pode deixar de ser pressuposto da adopção de toda e qualquer providência cautelar, pois só se poderá afirmar que uma providência visa acautelar a utilidade de uma sentença se houver o risco da inutilidade dessa sentença se a providência não for adoptada. Daí a essencialidade do periculum in mora, consubstanciado no risco do retardamento da tutela que poderá resultar na mora do processo. Quanto ao segundo, consiste na possibilidade de o requerente vir a ter êxito no processo principal (ter razão quanto ao fundo da causa).
 A aparência de bom direito é um importante factor de racionalidade enquanto elementar exigência de justiça, que se impõe no interesse de todos os envolvidos no processo. Ninguém deve ficar à mercê do abuso da tutela cautelar por parte de quem faça valer pretensões manifestamente infundadas.
Por regra, a atribuição de uma providência cautelar passa, assim, a depender da avaliação, por parte do juiz, sobre, por um lado, a existência do risco da constituição de uma situação de facto irreversível ou da produção de prejuízos de difícil reparação para o requerente e, por outro lado, o grau de viabilidade da pretensão deduzida ou a deduzir no processo principal, tal como ele resulta de uma apreciação preliminar sobre o mérito da causa.
Além destes dois pressupostos, à luz do princípio da proporcionalidade, o tribunal tem de proceder à ponderação em conjunto dos vários interesses, públicos e privados, em presença para avaliar se os danos que resultariam da concessão da providência não seriam superiores àqueles que poderiam resultar da sua recusa (artigo 120º, nº2).
Tendo em conta que falha o requisito do periculum in mora, por não haver fundado receio de um risco para espécies de fauna e flora subaquática na Albufeira de Castelo de Bode, proveniente da actividade náutica, e considerando, ainda, o grave prejuízo que resultaria para a Federação de Motonáutica pela não realização daquele evento, as providência cautelares não deveriam ser procedentes.
As providências cautelares foram requeridas antes da apresentação do Estudo de Impacto Ambiental, e no contexto de factos já apresentados na DIA nº 27352012, dos quais não resulta que haja efeitos nefastos para a albufeira nem para o ambiente, cumprindo-se os princípios invocados: princípio da dimensão ambiental da água; princípio da precaução e princípio da proporcionalidade; efectivando-se o direito a um ambiente sadio e equilibrado; e assegurando-se a utilização sustentável da água.

B)      Da necessidade de Avaliação de Impacto Ambiental
O objecto e o âmbito de aplicação do regime jurídico da avaliação de impacte ambiental (AIA) dos projectos públicos e privados susceptíveis de produzirem efeitos significativos no ambiente vêm delimitados e recortados pelo artigo 1º do DL 69/2000.
O critério que poderia determinar a sujeição imediata deste projecto a AIA consta do nº3 deste artigo 1º que considera que estão sujeitos a AIA, nos termos do presente, diploma os projectos tipificados no anexo I e os projectos enunciados no anexo II. Contínua este artigo preceituando no seu nº4 que estão sujeitos a AIA os projectos elencados no anexo II, ainda que não abrangidos pelos limiares nele fixados, que sejam considerados, por decisão da entidade licenciadora ou competente para a autorização do projecto, susceptíveis de provocar impacte significativo no ambiente em função da sua localização, dimensão ou natureza, de acordo com os critérios estabelecidos no anexo V. Porém, é outra a disposição que aqui importa invocar. Com efeito, o nº5 do artigo 1º dispõe que são ainda sujeitos a AIA os “projectos que em função da sua localização, dimensão ou natureza sejam considerados, por decisão conjunta do membro do Governo competente na área do projecto em razão da matéria e do membro do Governo responsável pela área do ambiente, como susceptíveis de provocar um impacte significativo no ambiente, tendo em conta os critérios estabelecidos no anexo V”.
Cumprindo o estabelecido no Anexo V da Lei 69/2000, que dispõe sobre critérios de selecção, ex vi, artigo 1º/5, o projecto em apreciação deve ser submetido a Avaliação de Impacto Ambiental por força do critério estabelecido no nº 1 ponto quinto. Já nº 2 ponto terceiro alínea e) 1ª parte desta mesma lei, quando conjugado com o artigo 4º/ al.jjj) subalínea i) da Lei 58/2005, confirma a necessidade de decisão conjunta do membro do Governo competente na área do projecto em razão da matéria e do membro do Governo responsável pela área do ambiente para sujeitar este projecto à AIA. Isto justifica-se se atentarmos às características do projecto, nomeadamente, a potencial geração de níveis de poluição indesejáveis e prejudiciais à vida animal existente na Albufeira de Castelo de Bode, bem como, o facto de se tratar de uma zona protegida. Tamanho impacto ambiental transforma esta decisão conjunta num dever-poder da Administração que, assim, fica instituída na incumbência de prevenir e minimizar as implicações ambientais do projecto ou, se não possível, excluí-lo de todo.

C)      Da conformidade da Lei da Água e do Plano de Ordenamento na atribuição da autorização
A autorização da Agência Portuguesa do Ambiente para organizar uma etapa do campeonato mundial de motonáutica na Albufeira de Castelo de Bode exigia a conformidade com o Plano de Ordenamento da Albufeira de Castelo de Bode, determinando que a competição teria lugar no plano de água, ficando vedada a utilização das zonas de proteção à barragem e respectivos órgãos de segurança.
Para uma análise precisa há que atender à aplicação do Plano de Ordenamento da Albufeira de Castelo de Bode, constante da Resolução do Conselho de Ministros 69/2003 (POACB). Este plano de ordenamento tem como função encontrar um equilíbrio ambiental na região, tentando conciliar sobretudo a preservação da qualidade da água e o aproveitamento dos recursos, através de uma abordagem integrada das potencialidades e das limitações do meio. O seu intuito é o de alcançar um desenvolvimento sustentável para o território, conciliando os valores ambientais com o crescimento social e económico
Estabelece o artigo 20º do DL 58/2005 que são os planos de ordenamento de albufeiras de águas públicas que estabelecem, nomeadamente, a demarcação do plano de água, da zona reservada e da zona de protecção e, também, a indicação das actividades secundárias permitidas, da intensidade dessas utilizações e da sua localização (alíneas a) e c), respectivamente). Com efeito, dispõe o artigo 13º que na zona de protecção aos órgãos de segurança da barragem são interditas todas as actividades secundárias, como a navegação com e sem motor, a prática de desportos náuticos, o uso balnear e a pesca, com excepção das embarcações de segurança e destinadas à manutenção das infra-estruturas. Isto significa em termos muito simples que: o desporto náutico é uma actividade secundária, logo a sua prática está excluída da zona de protecção aos órgãos de segurança da barragem. Quer isto dizer, portanto, que a autorização conferida à Federação Portuguesa de Motonáutica não viola a Lei da Água, sendo-lhe conforme, tal como assegura a conjugação destas duas disposições acima referidas.

D)     Da validade da autorização de utilização de recursos hídricos
Ao abrigo do princípio da precaução e da prevenção, as actividades que tenham um impacto significativo no estado das águas só podem ser desenvolvidas desde que ao abrigo de título de utilização emitido nos termos e condições previstos na lei 58/2005. Ademais, impende sobre os utilizadores dos recursos hídricos um dever de diligência, tendo em conta as circunstâncias, de modo a evitar qualquer perturbação do estado da água, qualquer contaminação ou alteração adversa das suas capacidades funcionais, pretendendo obter um uso económico da água sustentável e compatível com a manutenção da integridade dos recursos hídricos. Assim dispõem os artigos 56º, 57º Lei 58/2005. Mas disposição nesta matéria que aqui avulta é o preceituado no artigo 60º/1 i), que determina que as competições desportivas e a navegação estão sujeitas a licença prévia as seguintes utilizações privativas dos recursos hídricos do domínio público; esta é uma norma que deve ser complementada com o artigo 30º i) do Regulamento do Plano de Ordenamento da Albufeira de Castelo do Bode, Resolução do Conselho de Ministros nº69/2003 que dispõe em sentido convergente. Ainda nesta abordagem convém ter em conta as regras constantes dos artigos 63º e 66º, que dizem respeito às matérias dos requisitos e condições dos títulos de utilização, e ao próprio regime das autorizações, respectivamente. Já o regime das licenças vem consagrado no artigo posterior, estipulando que a licença confere ao seu titular o direito a exercer as actividades nas condições estabelecidas por lei ou regulamento, para os fins, nos prazos e com os limites estabelecidos no respectivo título, sem prejuízo de esta poder ser revista.
Respeitados e verificados os requisitos do artigo 10º do Decreto-Lei 226-A/2007e considerando que, ao abrigo da competência atribuída pelo Decreto-Lei 56/2012, no seu artigo 3º/3, d), se emite uma válida autorização para a utilização de recursos hídricos e circulação de navegações na Albufeira de Castelo do Bode, ao operador “Federação Portuguesa de Motonáutica”.

E)      Da não responsabilização ambiental
A publicação do Decreto-Lei n.º 147/2008, de 29 de Julho (Diploma RA), alterado pelo Decreto-Lei n.º 245/2009, de 22 de Setembro, e Decreto-Lei n.º 29-A/2011, de 1 de Março, introduziu no direito nacional o regime jurídico da responsabilidade por danos ambientais enquanto instrumento para a prevenção e reparação de danos causados ao ambiente, definindo obrigações específicas para os operadores abrangidos
O Diploma da Responsabilidade Ambiental é aplicável aos danos ambientais e ameaças iminentes desses danos, causados em virtude do exercício de qualquer actividade desenvolvida no âmbito de uma actividade económica, independentemente do seu carácter público ou privado, lucrativo ou não, denominada como «actividade ocupacional».
A responsabilidade pela prevenção e reparação dos danos ambientais e ameaças desses danos é, no âmbito deste diploma, estabelecida em dois níveis distintos nos termos dos artigos 12º e 13º. A Responsabilidade objectiva é aplicável ao operador que, independentemente da existência de dolo ou culpa, causar um dano ambiental em virtude do exercício de qualquer das actividades ocupacionais enumeradas no anexo III do diploma ou uma ameaça iminente daqueles danos em resultado dessas actividades. A Responsabilidade subjectiva é aplicável ao operador que, com dolo ou negligência, causar um dano ambiental em virtude do exercício de qualquer de qualquer actividade ocupacional distinta das enumeradas no anexo III do diploma ou uma ameaça iminente daqueles danos em resultado dessas actividades.
O Diploma RA não se aplica a qualquer afectação de um “recurso natural”, cingindo-se exclusivamente aos danos considerados, como, alterações adversas mensuráveis de um recurso natural ou a deterioração mensurável do serviço de um recurso que provoquem efeitos significativos nas água, espécies e habitats naturais protegidos e/ou solo (cfr. al. d) e e) do n.º 1 do art.º 11º). São assim abrangidos os danos significativos para os seguintes descritores ambientais: danos causados às espécies e habitats naturais protegidos; danos causados à água e danos causados ao solo. No caso sub iudice estaria em causa um dano à água, um dano que afecte adversa e significativamente, nos termos da legislação aplicável o estado ecológico ou o estado químico das águas de superfície, o potencial ecológico ou o estado químico das massas de água artificiais ou fortemente modificadas, ou o estado quantitativo ou o estado químico das águas subterrâneas e um dano causado às espécies e habitats naturais protegidos, dano este adverso para a consecução ou a manutenção do estado de conservação favorável desses habitats ou espécies, cuja avaliação tem que ter por base o estado inicial, nos termos dos critérios constantes no anexo IV ao Diploma RA, com excepção dos efeitos adversos previamente identificados que resultem de um acto de um operador expressamente autorizado pelas autoridades competentes, nos termos da legislação aplicável.
A materialização do risco, no que toca à imputação ao operador pelo dano ambiental, só é relevante se verificada a ocorrência de um dano enquanto alteração adversa mensurável e significativa causada sobre as águas, envolvendo uma afectação do estado ecológico ou do estado químico das águas de superfície, do potencial ecológico ou do estado químico das massas de água artificiais ou fortemente modificadas, ou o estado quantitativo ou o estado químico das águas subterrâneas.
Chegando a este ponto, importa tecer três considerações:
- Não cabe nesta sede falar de “dano” porque o Campeonato Mundial de Motonáutica ainda não se realizou;
- As considerações feitas sobre o perigo iminente foram feitas anteriormente ao Estudo de Impacto Ambiental, questionando-se o fundamento do receio que motivou o decretamento da providência cautelar, principalmente quando estão outros tantos interesses ponderosos em jogo;
- O ambiente não é uma “flor de estufa” e tem capacidade para absorver os resíduos e emissões produzidos pelas actividades humanas desde que os processos físicos, químicos e biológicos não sejam significativamente afectados por forma a afectar ulteriores utilizações do meio, cumprindo o princípio da dimensão ambiental da água.
Não há, pois, qualquer conclusão que não seja pela não responsabilização ambiental.

Cumpra-se a legalidade,


Os Procuradores-Gerais Adjuntos
Mário Prazeres
Cátia Neves
Fábio Massano
Vânia Almeida

Sem comentários:

Enviar um comentário