MINISTÉRIO
PÚBLICO
Procuradoria Distrital de Lisboa
Rua do Arsenal,
G, 1100-038 Lisboa
Exmos.
Senhores Juízes de Direito do Tribunal
Administrativo de Círculo de Lisboa
Chegada ao Tribunal Administrativo
do Círculo de Leiria a petição inicial que deu início ao processo nº 0687/2012,
foi fornecida cópia dessa petição e dos documentos que a instruem a este
Ministério Público, nos termos do artigo 85.º/1, CPTA, bem como das
contestações da entidade demandada e contra-interessados.
O Ministério Público vem, ao
abrigo do nº1 do artigo 219.º da CRP e do artigo 85.º do CPTA, emitir parecer
sobre o presente processo, o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
A) Das
providências cautelares
Há dois tipos de providências
cautelares em contencioso administrativo: as conservatórias, nas quais o
interessado pretende manter ou conservar um direito em perigo, procurando
evitar vir a ser prejudicado por medidas que a administração venha a adoptar;
as antecipatórias, onde o interessado procura a adopção de medidas por parte da
administração que podem ou não envolver actos jurídicos.
Os pressupostos para a concessão
das providências cautelares são, nos termos do artigo 120º, os critérios do periculum in mora e do fumus boni iuris. O primeiro, não pode
deixar de ser pressuposto da adopção de toda e qualquer providência cautelar,
pois só se poderá afirmar que uma providência visa acautelar a utilidade de uma
sentença se houver o risco da inutilidade dessa sentença se a providência não
for adoptada. Daí a essencialidade do periculum
in mora, consubstanciado no risco do retardamento da tutela que poderá
resultar na mora do processo. Quanto ao segundo, consiste na possibilidade de o
requerente vir a ter êxito no processo principal (ter razão quanto ao fundo da
causa).
A aparência de bom direito é um importante
factor de racionalidade enquanto elementar exigência de justiça, que se impõe
no interesse de todos os envolvidos no processo. Ninguém deve ficar à mercê do
abuso da tutela cautelar por parte de quem faça valer pretensões manifestamente
infundadas.
Por regra, a atribuição de uma
providência cautelar passa, assim, a depender da avaliação, por parte do juiz,
sobre, por um lado, a existência do risco da constituição de uma situação de
facto irreversível ou da produção de prejuízos de difícil reparação para o requerente
e, por outro lado, o grau de viabilidade da pretensão deduzida ou a deduzir no
processo principal, tal como ele resulta de uma apreciação preliminar sobre o
mérito da causa.
Além destes dois pressupostos, à
luz do princípio da proporcionalidade, o tribunal tem de proceder à ponderação
em conjunto dos vários interesses, públicos e privados, em presença para
avaliar se os danos que resultariam da concessão da providência não seriam
superiores àqueles que poderiam resultar da sua recusa (artigo 120º, nº2).
Tendo em conta que falha o
requisito do periculum in mora, por
não haver fundado receio de um risco para espécies de fauna e flora subaquática
na Albufeira de Castelo de Bode, proveniente da actividade náutica, e considerando,
ainda, o grave prejuízo que resultaria para a Federação de Motonáutica pela não
realização daquele evento, as providência cautelares não deveriam ser
procedentes.
As providências cautelares foram
requeridas antes da apresentação do Estudo de Impacto Ambiental, e no contexto
de factos já apresentados na DIA nº 27352012, dos quais não resulta que haja
efeitos nefastos para a albufeira nem para o ambiente, cumprindo-se os
princípios invocados: princípio da dimensão ambiental da água; princípio da
precaução e princípio da proporcionalidade; efectivando-se o direito a um
ambiente sadio e equilibrado; e assegurando-se a utilização sustentável da água.
B) Da
necessidade de Avaliação de Impacto Ambiental
O objecto e o âmbito de aplicação
do regime jurídico da avaliação de impacte ambiental (AIA) dos projectos públicos
e privados susceptíveis de produzirem efeitos significativos no ambiente vêm
delimitados e recortados pelo artigo 1º do DL 69/2000.
O critério que poderia determinar
a sujeição imediata deste projecto a AIA consta do nº3 deste artigo 1º que
considera que estão sujeitos a AIA, nos termos do presente, diploma os projectos
tipificados no anexo I e os projectos enunciados no anexo II. Contínua este
artigo preceituando no seu nº4 que estão sujeitos a AIA os projectos elencados
no anexo II, ainda que não abrangidos pelos limiares nele fixados, que sejam
considerados, por decisão da entidade licenciadora ou competente para a
autorização do projecto, susceptíveis de provocar impacte significativo no ambiente
em função da sua localização, dimensão ou natureza, de acordo com os critérios
estabelecidos no anexo V. Porém, é outra a disposição que aqui importa invocar.
Com efeito, o nº5 do artigo 1º dispõe que são ainda sujeitos a AIA os “projectos
que em função da sua localização, dimensão ou natureza sejam considerados, por
decisão conjunta do membro do Governo competente na área do projecto em razão
da matéria e do membro do Governo responsável pela área do ambiente, como
susceptíveis de provocar um impacte significativo no ambiente, tendo em conta
os critérios estabelecidos no anexo V”.
Cumprindo o estabelecido no Anexo
V da Lei 69/2000, que dispõe sobre critérios de selecção, ex vi, artigo 1º/5, o projecto em apreciação deve ser submetido a Avaliação
de Impacto Ambiental por força do critério estabelecido no nº 1 ponto quinto. Já
nº 2 ponto terceiro alínea e) 1ª parte desta mesma lei, quando conjugado com o
artigo 4º/ al.jjj) subalínea i) da Lei 58/2005, confirma a necessidade de decisão
conjunta do membro do Governo competente na área do projecto em razão da
matéria e do membro do Governo responsável pela área do ambiente para sujeitar
este projecto à AIA. Isto justifica-se se atentarmos às características do
projecto, nomeadamente, a potencial geração de níveis de poluição indesejáveis
e prejudiciais à vida animal existente na Albufeira de Castelo de Bode, bem
como, o facto de se tratar de uma zona protegida. Tamanho impacto ambiental
transforma esta decisão conjunta num dever-poder da Administração que, assim,
fica instituída na incumbência de prevenir e minimizar as implicações ambientais
do projecto ou, se não possível, excluí-lo de todo.
C) Da
conformidade da Lei da Água e do Plano de Ordenamento na atribuição da autorização
A autorização da Agência
Portuguesa do Ambiente para organizar uma etapa do campeonato mundial de
motonáutica na Albufeira de Castelo de Bode exigia a conformidade com o Plano
de Ordenamento da Albufeira de Castelo de Bode, determinando que a competição
teria lugar no plano de água, ficando vedada a utilização das zonas de proteção
à barragem e respectivos órgãos de segurança.
Para uma análise precisa há que
atender à aplicação do Plano de Ordenamento da Albufeira de Castelo de Bode, constante
da Resolução do Conselho de Ministros 69/2003 (POACB). Este plano de
ordenamento tem como função encontrar um equilíbrio ambiental na região,
tentando conciliar sobretudo a preservação da qualidade da água e o aproveitamento
dos recursos, através de uma abordagem integrada das potencialidades e das
limitações do meio. O seu intuito é o de alcançar um desenvolvimento
sustentável para o território, conciliando os valores ambientais com o
crescimento social e económico
Estabelece o artigo 20º do DL
58/2005 que são os planos de ordenamento de albufeiras de águas públicas que estabelecem,
nomeadamente, a demarcação do plano de água, da zona reservada e da zona de
protecção e, também, a indicação das actividades secundárias permitidas, da
intensidade dessas utilizações e da sua localização (alíneas a) e c),
respectivamente). Com efeito, dispõe o artigo 13º que na zona de protecção aos
órgãos de segurança da barragem são interditas todas as actividades
secundárias, como a navegação com e sem motor, a prática de desportos náuticos,
o uso balnear e a pesca, com excepção das embarcações de segurança e destinadas
à manutenção das infra-estruturas. Isto significa em termos muito simples que:
o desporto náutico é uma actividade secundária, logo a sua prática está
excluída da zona de protecção aos órgãos de segurança da barragem. Quer isto
dizer, portanto, que a autorização conferida à Federação Portuguesa de
Motonáutica não viola a Lei da Água, sendo-lhe conforme, tal como assegura a
conjugação destas duas disposições acima referidas.
D) Da
validade da autorização de utilização de recursos hídricos
Ao abrigo do princípio da
precaução e da prevenção, as actividades que tenham um impacto significativo no
estado das águas só podem ser desenvolvidas desde que ao abrigo de título de
utilização emitido nos termos e condições previstos na lei 58/2005. Ademais,
impende sobre os utilizadores dos recursos hídricos um dever de diligência,
tendo em conta as circunstâncias, de modo a evitar qualquer perturbação do
estado da água, qualquer contaminação ou alteração adversa das suas capacidades
funcionais, pretendendo obter um uso económico da água sustentável e compatível
com a manutenção da integridade dos recursos hídricos. Assim dispõem os artigos
56º, 57º Lei 58/2005. Mas disposição nesta matéria que aqui avulta é o preceituado
no artigo 60º/1 i), que determina que as competições desportivas e a navegação
estão sujeitas a licença prévia as seguintes utilizações privativas dos
recursos hídricos do domínio público; esta é uma norma que deve ser complementada
com o artigo 30º i) do Regulamento do Plano de Ordenamento da Albufeira de Castelo
do Bode, Resolução do Conselho de Ministros nº69/2003 que dispõe em sentido
convergente. Ainda nesta abordagem convém ter em conta as regras constantes dos
artigos 63º e 66º, que dizem respeito às matérias dos requisitos e condições
dos títulos de utilização, e ao próprio regime das autorizações,
respectivamente. Já o regime das licenças vem consagrado no artigo posterior,
estipulando que a licença confere ao seu titular o direito a exercer as
actividades nas condições estabelecidas por lei ou regulamento, para os fins,
nos prazos e com os limites estabelecidos no respectivo título, sem prejuízo de
esta poder ser revista.
Respeitados e verificados os
requisitos do artigo 10º do Decreto-Lei 226-A/2007e considerando que, ao abrigo
da competência atribuída pelo Decreto-Lei 56/2012, no seu artigo 3º/3, d), se emite
uma válida autorização para a utilização de recursos hídricos e circulação de
navegações na Albufeira de Castelo do Bode, ao operador “Federação Portuguesa
de Motonáutica”.
E) Da
não responsabilização ambiental
A publicação do Decreto-Lei n.º
147/2008, de 29 de Julho (Diploma RA), alterado pelo Decreto-Lei n.º 245/2009,
de 22 de Setembro, e Decreto-Lei n.º 29-A/2011, de 1 de Março, introduziu no
direito nacional o regime jurídico da responsabilidade por danos ambientais
enquanto instrumento para a prevenção e reparação de danos causados ao
ambiente, definindo obrigações específicas para os operadores abrangidos
O Diploma da Responsabilidade
Ambiental é aplicável aos danos ambientais e ameaças iminentes desses danos,
causados em virtude do exercício de qualquer actividade desenvolvida no âmbito
de uma actividade económica, independentemente do seu carácter público ou
privado, lucrativo ou não, denominada como «actividade ocupacional».
A responsabilidade pela prevenção
e reparação dos danos ambientais e ameaças desses danos é, no âmbito deste
diploma, estabelecida em dois níveis distintos nos termos dos artigos 12º e 13º.
A Responsabilidade objectiva é aplicável ao operador que, independentemente da
existência de dolo ou culpa, causar um dano ambiental em virtude do exercício
de qualquer das actividades ocupacionais enumeradas no anexo III do diploma ou
uma ameaça iminente daqueles danos em resultado dessas actividades. A Responsabilidade
subjectiva é aplicável ao operador que, com dolo ou negligência, causar um dano
ambiental em virtude do exercício de qualquer de qualquer actividade
ocupacional distinta das enumeradas no anexo III do diploma ou uma ameaça
iminente daqueles danos em resultado dessas actividades.
O Diploma RA não se aplica a
qualquer afectação de um “recurso natural”, cingindo-se exclusivamente aos
danos considerados, como, alterações adversas mensuráveis de um recurso natural
ou a deterioração mensurável do serviço de um recurso que provoquem efeitos significativos
nas água, espécies e habitats naturais protegidos e/ou solo (cfr. al. d) e e)
do n.º 1 do art.º 11º). São assim abrangidos os danos significativos para os seguintes
descritores ambientais: danos causados às espécies e habitats naturais protegidos;
danos causados à água e danos causados ao solo. No caso sub iudice estaria em causa um dano à água, um dano que afecte adversa
e significativamente, nos termos da legislação aplicável o estado ecológico ou
o estado químico das águas de superfície, o potencial ecológico ou o estado
químico das massas de água artificiais ou fortemente modificadas, ou o estado
quantitativo ou o estado químico das águas subterrâneas e um dano causado às
espécies e habitats naturais protegidos, dano este adverso para a consecução ou
a manutenção do estado de conservação favorável desses habitats ou espécies,
cuja avaliação tem que ter por base o estado inicial, nos termos dos critérios
constantes no anexo IV ao Diploma RA, com excepção dos efeitos adversos
previamente identificados que resultem de um acto de um operador expressamente
autorizado pelas autoridades competentes, nos termos da legislação aplicável.
A materialização do risco, no que
toca à imputação ao operador pelo dano ambiental, só é relevante se verificada
a ocorrência de um dano enquanto alteração adversa mensurável e significativa
causada sobre as águas, envolvendo uma afectação do estado ecológico ou do
estado químico das águas de superfície, do potencial ecológico ou do estado
químico das massas de água artificiais ou fortemente modificadas, ou o estado
quantitativo ou o estado químico das águas subterrâneas.
Chegando a este ponto, importa tecer
três considerações:
- Não cabe nesta sede falar de “dano”
porque o Campeonato Mundial de Motonáutica ainda não se realizou;
- As considerações feitas sobre o
perigo iminente foram feitas anteriormente ao Estudo de Impacto Ambiental,
questionando-se o fundamento do receio que motivou o decretamento da
providência cautelar, principalmente quando estão outros tantos interesses
ponderosos em jogo;
- O ambiente não é uma “flor de
estufa” e tem capacidade para absorver os resíduos e emissões produzidos pelas actividades
humanas desde que os processos físicos, químicos e biológicos não sejam
significativamente afectados por forma a afectar ulteriores utilizações do
meio, cumprindo o princípio da dimensão ambiental da água.
Não há, pois, qualquer conclusão
que não seja pela não responsabilização ambiental.
Cumpra-se a legalidade,
Os Procuradores-Gerais
Adjuntos
Mário Prazeres
Cátia Neves
Fábio Massano
Vânia Almeida
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