quinta-feira, 17 de maio de 2012

Despacho liminar de rejeição da providência cautelar


Processo nº 0687/12

Despacho


Foi requerida, em litisconsórcio voluntário, pelas Associações Ambientalista Bode Verde e Consumidores da água de Lisboa, providência cautelar de suspensão da eficácia do acto administrativo de autorização da Agência Portuguesa do Ambiente para a realização de um Campeonato de Motonáutica pela Federação Portuguesa de Motonáutica, ao abrigo do artigo 112º nº2 a)da Lei nº15/2002 de 22 de Fevereiro que aprova o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (daqui em diante CPTA).
Analisado o requerimento à luz do disposto no artigo 116.º, n.º 2, do CPTA, verifica-se que:
a)     não indica os contra-interessados a quem a adopção da providência cautelar possa directamente prejudicar (artigo 114º nº3 d) CPTA);
b)     não é claro o título de legitimidade dos requerentes (116º nº2 b) CPTA).
Os requerentes invocam quer o artigo 55º nº1 alínea a) CPTA, ou seja as partes invocam interesse directo e pessoal, o que nunca poderia ser no caso, e o artigo 9º nº2 CPTA quanto à legitimidade face a interesses difusos onde se verifica a ausência de interesse directo.
As Requerentes Associação Ambientalista Bode Verde e Associação de consumidores de água de Lisboa não dispõem de interesse pessoal e directo na questão que acabam por arguir em tribunal. Na verdade, o que as requerentes querem proteger é toda a biosfera existente na Barragem e, como parece evidente, tal intuito não se subsume num direito subjectivo da titularidade destas. Trata-se sim de um interesse difuso. Os interesses difusos correspondem a um interesse jurídico reconhecido e tutelado, cuja titularidade pertence a todos e a cada um dos membros de uma comunidade ou grupo, mas não são susceptíveis de apropriação individual por qualquer um desses membros. Citando o acórdão da Relação de Lisboa (20/6/2006, proc. 11260/2005-7), “o ambiente, a qualidade de vida e a saúde são bens jurídicos a que respeitam tais interesses, assim como a conservação da fauna e flora - são simultaneamente interesses não públicos, não colectivos e não individuais”.
Segundo Nuno Sérgio Marques Antunes, o direito de acção popular atribuído a qualquer entidade no gozo dos seus direitos civis e políticos ou pessoas colectivas que visem a defesa de interesses determinados, requerer a intervenção dos órgãos jurisdicionais do Estado, com o fim de assegurar a tutela de certos interesses comunitários aos quais a CRP confere protecção qualificada, bem como requerer a reparação dos danos que lhes sejam causados. 
 A Acção popular está consagrada expressamente na Lei Fundamental no art.º 52º CRP, estando incluída no elenco dos direitos, liberdades e garantias. A Acção Popular permitindo ao cidadão participar na condução política do Estado, revela ser, uma decorrência do princípio democrático
É do direito consagrado constitucionalmente, no artigo 52º/3, que embora não o digam expressamente as requerentes se fazem valer. A acção popular nos termos da legislação portuguesa não constitui um meio processual per si, mas antes uma forma de alargamento da legitimidade processual activa a todos os cidadãos. Por não ser uma acção em sentido técnico, não comporta qualquer mecanismo útil para a prevenção, cessação ou perseguição judicial do interesse a que se destina. A defesa destes interesses, é concedida aos cidadãos uti cives e não uti singuli, precisamente porque são interesses de toda a comunidade, e, por isso, os cidadãos uti cives têm o direito de promover a defesa de tais interesses, individual ou associativamente, como disse já, recorrentemente, o STA.
A Lei n.º 83/95 de 31-08 (lei do direito de participação procedimental e de acção popular) veio regulamentar a acção popular especial para a tutela dos interesses difusos, e possibilitar que fossem interpostas acções no âmbito do contencioso administrativo (cf. art.º 12º) 
As associações de defesa do ambiente (cf. art.º 2º, n.º 1 da LADA – Lei de Defesa do Ambiente – Lei n.º 10/87, 04-04) têm legitimidade activa para propor acções necessárias à preservação ou cessação de actos e omissões de entidades públicas ou privadas que constituam factor de degradação do ambiente.
Têm legitimidade para recorrer a tribunal e requerer a tutela de bens e valores ambientais, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda as associações e fundações para a defesa dos interesses em causa, desde que preencham os seguintes requisitos: a. possuírem personalidade jurídica, b. incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate (tem de haver correspondência com fins e âmbito de actuação) c. não exercerem qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais.
Tudo visto, parece ser claro que apenas nesta medida e só nesta – enquanto requerentes populares – seriam os requerentes partes legitimas. Acontece que nunca citaram nem requereram tal facto.
c)      Quanto à legitimidade passiva, a Agência Portuguesa do Ambiente é parte legítima, art. 10.º, número 1 do CPTA, pois está colocada numa posição contraposta à dos requerentes, na medida em que o seu pedido se dirige à suspensão do campeonato de motonáutica, pondo em causa o acto administrativo praticado pela Agência Portuguesa do Ambiente. Também nada há a acrescentar pelo facto de ser demandada a pessoa colectiva de direito público uma vez que a referida Agência se trata de um Instituto Público.
d)     Quanto ao objecto da providência em si, importa aludir aos ensinamentos de Isabel Celeste M. Fonseca, in Dos novos processos urgentes no contencioso administrativo, função e estrutura, pág. 81 ss, para dizer que o recurso à tutela cautelar será impossível ou insuficiente sempre que o juiz cautelar seja forçado a intrometer-se na questão controvertida alvo do processo principal.
Ao fazê-lo, o juiz cautelar estaria a atentar contra o carácter provisório das providências cautelares administrativas, esgotando o objecto da acção administrativa principal. «Pelo que a decisão provisória destruirá a utilidade posterior de qualquer sentença de mérito que vier a ser emitida no âmbito de um processo principal que conheça sobre a mesma situação».
Na hipótese em apreço, a utilidade da providência cautelar seria a não realização do campeonato MUNDIAL DE MOTONAUTICA na albufeira de Castelo de Bode sendo esta também a decisão pretendida no processo principal. Ora, se a providência cautelar fosse admitida e o campeonato fosse suspenso, aquando da decisão de mérito, caso fosse contrária à providência cautelar, ou seja, decidisse pela validade do acto, os danos causados ao requerido seriam irreversíveis.
A forma como o factor tempo  interfere com o direito que é objecto do processo e de como este só se realiza se a decisão do juiz for imediata são condições que obrigam à emissão de uma decisão que não pode ser provisória, porquanto qualquer que seja a decisão formal que o juiz emita, ao pronunciar-se sobre o pedido cautelar, ele decide sobre o objecto do processo principal, já que nesses casos, o objecto mediato dos processos se identifica com referência à situação substancial a acautelar – esvaziando o conteúdo da decisão principal sem que tenha legitimidade para o fazer.
Recordando as palavras de Mário Aroso de Almeida, in Manual de Processo Administrativo, pág. 438 ss, «Uma providência cautelar não pode antecipar, a título definitivo a constituição de uma situação que só a decisão a proferir no processo principal pode determinar a título definitivo sob pena de estar a violar uma das principais funções da tutela cautelar que é a provisoriedade».

A providência cautelar deve ser rejeitada por falta de um pressuposto processual admitindo-se a convolação para uma acção de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, 109º CPTA.
 O direito ao ambiente é um direito de conteúdo negativo, isto é, um direito à abstenção, por parte do Estado e de terceiros, de prática de acções ambientalmente nocivas, impondo para tal proibições ou deveres de abstenção; por outro lado é um direito de conteúdo positivo a uma acção do Estado, no sentido de defender o ambiente e de controlar as acções de degradação ambiental, impondo-lhe as correspondentes obrigações politicas, legislativas, administrativas e penais, in Constituição da República Portuguesa Anotada por Gomes Canotilho.
Como é do entendimento de Carla Amado Gomes, não existe qualquer direito subjectivo, por não existir autonomia em relação aos outros direitos pessoais ou patrimoniais, não sendo possível uma disposição de fruição de um bem que não pertence ao individuo.
Não existe para o efeito uma lógica de permissão normativa especifica de aproveitamento de um bem, nas palavras de Menezes Cordeiro.
Conclui-se pois, pela titularidade conjunta do ambiente, não sendo passível de apropriação individual.
Referir ainda, que no caso só faria sentido falar num direito ao ambiente, enquanto direito de personalidade, perante ofensas gravíssimas ao ser humano, no entendimento de Luís Carlos Batista. As quais não foram invocadas no requerimento cautelar.
Quanto ao objecto da possível intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, meio processual adequado, importa aferir se o direito ao ambiente, uma vez que se encontra regulado no art.66º da CRP, ou seja no Título III, capítulo II referente aos direitos e deveres sociais é ou não um Direito análogo a direitos, liberdades e garantias.
Segundo a doutrina portuguesa maioritária, este meio processual tem como objecto os direitos, liberdades e garantias plasmados na Parte I, Título II, da C.R.P. assim como os direitos fundamentais de natureza análoga (art. 17º CRP), sendo de rejeitar as posições minoritárias defensoras de direitos, liberdades e garantias estritamente pessoais, quer de direitos fundamentais em sentido amplo.
Considerando que o direito ao ambiente não é um direito análogo a direitos liberdades e garantias não podemos admitir a extensão do objecto da intimação a direitos económicos, sociais e culturais, o direito ao ambiente fica excluído, de modo a evitar a pressão de esferas de competências que o legislador administrativo pretendeu por bem atribuir à jurisdição administrativa.
Em conclusão, aludindo aos ensinamentos de Melo Alexandrino, o direito do ambiente é considerado como um interesse difuso, pois não é individual, nem de interesse público, distinguindo-se assim dos restantes direitos fundamentais por não constituir situações jurídicas activas dos indivíduos.
O direito de impedir, preventiva ou sucessivamente, a degradação do ambiente é reconhecido a todos (art. 66º nº1 CRP), em conformidade com a natureza colectiva do bem constitucionalmente protegido, sendo para o efeito necessário uma acção popular para defesa do ambiente (art. 52º/3 a).
   A Acção Popular consiste num meio de participação do cidadão na condução política do Estado, seja para defender interesses públicos, que devam ser prosseguidos por entidades públicas – as denominadas pessoas colectivas de direito público, ou para fiscalizar a legalidade da actividade ou actuação administrativa, actuação dessas pessoas colectivas e dos seus órgãos e a defesa das posições dos particulares.
   O art.º 45º nº 2 da Lei nº 11/87, de 07 de Abril (daqui em diante LBA) estatui que é reconhecida qualquer pessoa, independentemente de ter interesse pessoal na demanda, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa e às autarquias locais, o direito de propor e intervir, nos teros previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa dos valores protegidos pela referida LBA.
   A Lei 83/95 de 31 de Agosto (daqui em diante LAP) estatui o direito de Acção Popular. Nesta Lei identificamos o seu âmbito objectivo e o seu âmbito subjectivo. O primeiro está estatuído no art.1.º n.º2 da LAP e segundo este são interesses protegidos pela LAP, a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público. O segundo está estatuído nos art.2.º e 3.º da LAP. Rezam os preceitos que têm legitimidade para procedimento de acção popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses que referimos a propósito do âmbito objectivo.
   Como resulta do âmbito objectivo da LAP a acção popular ocupa-se de interesses difusos, ou seja interesses que pertencem a todos os indivíduos, ou pelo menos a um grupo alongado de indivíduos, que se encontram numa situação de contitularidade de um bem decorrente de serem membros de uma comunidade. São interesses pluralistas, solidários, comunitários, não patrimoniais e desinteressados, sendo ontologicamente públicos.
   Como vimos a Intimação é aplicável para protecção de direitos, liberdades e garantias já a Acção popular aplica-se a direitos difusos.
Como defende CARLA AMADO GOMES a intimação na acção popular, em sede de ambiente, tem reduzida utilidade. Quando intentada com sucesso a intimação nos termos do art.º 109º a 111º do CPTA, o requerido fica investido no direito de exigir da entidade agressora uma conduta, activa ou omissiva, de conteúdo conformado pela pretensão subjectiva que reclama. Defende esta Doutrina que, no âmbito da fruição de bens colectivos, não existem verdadeiros direitos a pretensões individualizadas, mas interesses de facto, de conteúdo subjectivamente indeterminável, em razão da inapropriabilidade de tais bens.
   Estando em causa o bem jurídico ambiente, sendo a protecção deste, como defende a LAP no nº2 do seu art.º 1º, um interesse difuso, correspondendo a um interesse juridicamente conhecido e tutelado, cuja titularidade pertence a todos e a cada um dos membros de uma comunidade ou de um grupo, não é susceptível de apropriação individual de qualquer desses membros.
   Não é de admitir a Acção Popular na Intimação nestes termos. A Intimação visa a protecção imediata de um direito, liberdade e garantia. O ambiente não preenche os requisitos de aplicabilidade do instituto.




Decisão:

-         Rejeição pela falta de indicação dos contra-interessados, nos termos do art. 114º nº3 d), sendo admissível a entrega de novo requerimento, nos termos do art. 114º nº4 e 116º nº3;
-         Falta de interesse pessoal e directo pelas requerentes, sendo considerados autores populares para o efeito, por se tratar de interesses difusos;
-         Não aplicação do meio indicado anteriormente, por o direito do ambiente não pertencer à categoria de direitos, liberdades e garantias plasmados na CRP pelos motivos explanados anteriormente;
-         A acção de intimação não se coaduna com o mecanismo da acção popular.
-         Só o processo principal será admitido para efeitos de procedibilidade sendo que a alteração proposta supra fica inevitavelmente prejudicada.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide rejeitar liminarmente a providência cautelar (artigo 116º CPTA). Custas pelos requerentes.

Lisboa, 12 de Maio de 2012.
Ana Filipa Costa
Ana Maria Pereira
Ana Rita Pereira
Cátia Muchacho
Diogo Ramos
Hélder Correia

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