Processo nº 0687/12
Despacho
Foi
requerida, em litisconsórcio voluntário,
pelas Associações Ambientalista Bode Verde e Consumidores da água de Lisboa, providência
cautelar de suspensão da eficácia do
acto administrativo de autorização da Agência Portuguesa do Ambiente
para a realização de um Campeonato de Motonáutica pela Federação Portuguesa de
Motonáutica, ao abrigo do artigo 112º nº2 a)da Lei nº15/2002 de 22 de Fevereiro
que aprova o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (daqui em diante
CPTA).
Analisado
o requerimento à luz do disposto no artigo 116.º, n.º 2, do CPTA, verifica-se
que:
a) não indica os contra-interessados a quem a adopção da
providência cautelar possa directamente prejudicar (artigo 114º nº3 d) CPTA);
b) não é claro o título de
legitimidade dos requerentes (116º
nº2 b) CPTA).
Os requerentes invocam quer o artigo 55º nº1 alínea a) CPTA,
ou seja as partes invocam interesse directo e pessoal, o que nunca poderia ser
no caso, e o artigo 9º nº2 CPTA quanto à legitimidade face a interesses difusos
onde se verifica a ausência de interesse directo.
As Requerentes Associação Ambientalista Bode Verde e
Associação de consumidores de água de Lisboa não dispõem de interesse pessoal e
directo na questão que acabam por arguir em tribunal. Na verdade, o que as
requerentes querem proteger é toda a biosfera existente na Barragem e, como
parece evidente, tal intuito não se subsume num direito subjectivo da
titularidade destas. Trata-se sim de um interesse
difuso. Os interesses difusos correspondem a um interesse
jurídico reconhecido e tutelado, cuja titularidade pertence a todos e a cada um
dos membros de uma comunidade ou grupo, mas não são susceptíveis de apropriação
individual por qualquer um desses membros. Citando o acórdão da Relação de
Lisboa (20/6/2006, proc. 11260/2005-7), “o
ambiente, a qualidade de vida e a saúde são bens jurídicos a que respeitam tais
interesses, assim como a conservação da fauna e flora - são simultaneamente
interesses não públicos, não colectivos e não individuais”.
Segundo
Nuno Sérgio Marques Antunes, o direito de acção popular atribuído a qualquer
entidade no gozo dos seus direitos civis e políticos ou pessoas colectivas que
visem a defesa de interesses determinados, requerer a intervenção dos órgãos
jurisdicionais do Estado, com o fim de assegurar a tutela de certos interesses
comunitários aos quais a CRP confere protecção qualificada, bem como requerer a
reparação dos danos que lhes sejam causados.
A Acção popular está consagrada expressamente
na Lei Fundamental no art.º 52º CRP, estando incluída no elenco dos direitos,
liberdades e garantias. A Acção Popular permitindo ao cidadão participar na
condução política do Estado, revela ser, uma decorrência do princípio
democrático
É do direito consagrado constitucionalmente, no
artigo 52º/3, que embora não o digam expressamente as requerentes se fazem
valer. A acção popular nos termos da legislação portuguesa não constitui um
meio processual per si, mas antes uma
forma de alargamento da legitimidade processual activa a todos os cidadãos. Por
não ser uma acção em sentido técnico, não comporta qualquer mecanismo útil para
a prevenção, cessação ou perseguição judicial do interesse a que se destina. A
defesa destes interesses, é concedida aos cidadãos uti cives e não uti
singuli, precisamente porque são interesses de toda a comunidade, e, por
isso, os cidadãos uti cives têm
o direito de promover a defesa de tais interesses, individual ou
associativamente, como disse já, recorrentemente, o STA.
A Lei n.º 83/95 de 31-08 (lei do direito de
participação procedimental e de acção popular) veio regulamentar a acção
popular especial para a tutela dos interesses difusos, e possibilitar que
fossem interpostas acções no âmbito do contencioso administrativo (cf. art.º
12º)
As associações de defesa do ambiente (cf. art.º
2º, n.º 1 da LADA – Lei de Defesa do Ambiente – Lei n.º 10/87, 04-04) têm
legitimidade activa para propor acções necessárias à preservação ou cessação de
actos e omissões de entidades públicas ou privadas que constituam factor de
degradação do ambiente.
Têm legitimidade para recorrer a tribunal e
requerer a tutela de bens e valores ambientais, independentemente de terem ou
não interesse directo na demanda as associações e fundações para a defesa dos
interesses em causa, desde que preencham os seguintes requisitos: a. possuírem personalidade jurídica, b. incluírem expressamente nas suas
atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em
causa no tipo de acção de que se trate (tem de haver correspondência com fins e
âmbito de actuação) c. não exercerem
qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou
profissionais liberais.
Tudo visto, parece ser claro que apenas nesta
medida e só nesta – enquanto requerentes populares – seriam os requerentes
partes legitimas. Acontece que nunca citaram nem requereram tal facto.
c) Quanto à legitimidade passiva, a Agência
Portuguesa do Ambiente é parte legítima, art. 10.º, número 1 do CPTA, pois está
colocada numa posição contraposta à dos requerentes, na medida em que o seu
pedido se dirige à suspensão do campeonato de motonáutica, pondo em causa o
acto administrativo praticado pela Agência Portuguesa do Ambiente. Também nada
há a acrescentar pelo facto de ser demandada a pessoa colectiva de direito
público uma vez que a referida Agência se trata de um Instituto Público.
d) Quanto ao objecto da providência em si, importa aludir aos
ensinamentos de Isabel Celeste M. Fonseca,
in Dos novos processos urgentes no contencioso administrativo, função e
estrutura, pág. 81 ss, para dizer que o recurso à tutela cautelar será
impossível ou insuficiente sempre que o juiz cautelar seja forçado a
intrometer-se na questão controvertida alvo do processo principal.
Ao fazê-lo, o juiz cautelar estaria a atentar contra o
carácter provisório das providências cautelares administrativas, esgotando o
objecto da acção administrativa principal.
«Pelo que a decisão provisória destruirá a utilidade posterior de qualquer
sentença de mérito que vier a ser emitida no âmbito de um processo principal
que conheça sobre a mesma situação».
Na hipótese em apreço, a utilidade da providência cautelar
seria a não realização do campeonato MUNDIAL DE MOTONAUTICA na albufeira de
Castelo de Bode sendo esta também a decisão pretendida no processo principal.
Ora, se a providência cautelar fosse admitida e o campeonato fosse suspenso,
aquando da decisão de mérito, caso fosse contrária à providência cautelar, ou
seja, decidisse pela validade do acto, os danos causados ao requerido seriam
irreversíveis.
A forma como o factor tempo interfere com o direito
que é objecto do processo e de como este só se realiza se a decisão do juiz for
imediata são condições que obrigam à emissão de uma decisão que não pode ser
provisória, porquanto qualquer que seja a decisão formal que o juiz emita, ao
pronunciar-se sobre o pedido cautelar, ele decide sobre o objecto do processo
principal, já que nesses casos, o objecto mediato dos processos se identifica
com referência à situação substancial a acautelar – esvaziando o conteúdo da
decisão principal sem que tenha legitimidade para o fazer.
Recordando as palavras de Mário Aroso de Almeida, in Manual
de Processo Administrativo, pág. 438 ss, «Uma
providência cautelar não pode antecipar, a título definitivo a constituição de
uma situação que só a decisão a proferir no processo principal pode determinar
a título definitivo sob pena de estar a violar uma das principais funções da
tutela cautelar que é a provisoriedade».
A
providência cautelar deve ser rejeitada
por falta de um pressuposto processual admitindo-se a convolação para uma acção
de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, 109º CPTA.
O direito ao ambiente é um direito de conteúdo
negativo, isto é, um direito à abstenção, por parte do Estado e de terceiros,
de prática de acções ambientalmente nocivas, impondo para tal proibições ou
deveres de abstenção; por outro lado é um direito de conteúdo positivo a uma
acção do Estado, no sentido de defender o ambiente e de controlar as acções de degradação
ambiental, impondo-lhe as correspondentes obrigações politicas, legislativas,
administrativas e penais, in
Constituição da República Portuguesa Anotada por Gomes Canotilho.
Como
é do entendimento de Carla Amado Gomes, não existe qualquer direito subjectivo,
por não existir autonomia em relação aos outros direitos pessoais ou
patrimoniais, não sendo possível uma disposição de fruição de um bem que não
pertence ao individuo.
Não
existe para o efeito uma lógica de permissão normativa especifica de
aproveitamento de um bem, nas palavras de Menezes Cordeiro.
Conclui-se
pois, pela titularidade conjunta do ambiente, não sendo passível de apropriação
individual.
Referir
ainda, que no caso só faria sentido falar num direito ao ambiente, enquanto
direito de personalidade, perante ofensas gravíssimas ao ser humano, no
entendimento de Luís Carlos Batista. As quais não foram invocadas no requerimento
cautelar.
Quanto
ao objecto da possível intimação para
protecção de direitos, liberdades e garantias, meio processual adequado,
importa aferir se o direito ao ambiente, uma vez que se encontra regulado no
art.66º da CRP, ou seja no Título III, capítulo II referente aos direitos e
deveres sociais é ou não um Direito análogo a direitos, liberdades e garantias.
Segundo
a doutrina portuguesa maioritária, este meio processual tem como objecto os direitos,
liberdades e garantias plasmados na Parte I, Título II, da C.R.P. assim como os
direitos fundamentais de natureza análoga (art. 17º CRP), sendo de rejeitar as
posições minoritárias defensoras de direitos, liberdades e garantias
estritamente pessoais, quer de direitos fundamentais em sentido amplo.
Considerando
que o direito ao ambiente não é um direito análogo a direitos liberdades e
garantias não podemos admitir a extensão do objecto da intimação a direitos
económicos, sociais e culturais, o direito ao ambiente fica excluído, de modo a
evitar a pressão de esferas de competências que o legislador administrativo
pretendeu por bem atribuir à jurisdição administrativa.
Em
conclusão, aludindo aos ensinamentos de Melo Alexandrino, o direito do ambiente
é considerado como um interesse difuso, pois não é individual, nem de interesse
público, distinguindo-se assim dos restantes direitos fundamentais por não
constituir situações jurídicas activas dos indivíduos.
O
direito de impedir, preventiva ou sucessivamente, a degradação do
ambiente é reconhecido a todos (art. 66º nº1 CRP), em conformidade com a
natureza colectiva do bem constitucionalmente protegido, sendo para o efeito
necessário uma acção popular para defesa do ambiente (art. 52º/3 a).
A Acção Popular consiste num meio de participação do cidadão na condução
política do Estado, seja para defender interesses públicos, que devam ser
prosseguidos por entidades públicas – as denominadas pessoas colectivas de
direito público, ou para fiscalizar a legalidade da actividade ou actuação
administrativa, actuação dessas pessoas colectivas e dos seus órgãos e a defesa
das posições dos particulares.
O art.º 45º nº 2 da Lei nº 11/87, de 07 de Abril (daqui em diante LBA)
estatui que é reconhecida qualquer pessoa, independentemente de ter interesse
pessoal na demanda, bem como as associações e fundações defensoras dos
interesses em causa e às autarquias locais, o direito de propor e intervir, nos
teros previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à
defesa dos valores protegidos pela referida LBA.
A Lei 83/95 de 31 de Agosto (daqui em diante LAP) estatui o direito de
Acção Popular. Nesta Lei identificamos o seu âmbito objectivo e o seu âmbito
subjectivo. O primeiro está estatuído no art.1.º n.º2 da LAP e segundo este são
interesses protegidos pela LAP, a saúde pública, o ambiente, a qualidade de
vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o
domínio público. O segundo está estatuído nos art.2.º e 3.º da LAP. Rezam os
preceitos que têm legitimidade para procedimento de acção popular quaisquer
cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e
fundações defensoras dos interesses que referimos a propósito do âmbito
objectivo.
Como resulta do âmbito objectivo da LAP a acção popular ocupa-se de
interesses difusos, ou seja interesses que pertencem a todos os indivíduos, ou
pelo menos a um grupo alongado de indivíduos, que se encontram numa situação de
contitularidade de um bem decorrente de serem membros de uma comunidade. São
interesses pluralistas, solidários, comunitários, não patrimoniais e
desinteressados, sendo ontologicamente públicos.
Como vimos a Intimação é
aplicável para protecção de direitos, liberdades e garantias já a Acção popular
aplica-se a direitos difusos.
Como defende CARLA AMADO GOMES a intimação na acção popular, em sede de
ambiente, tem reduzida utilidade. Quando intentada com sucesso a intimação
nos termos do art.º 109º a 111º do CPTA, o requerido fica investido no direito
de exigir da entidade agressora uma conduta, activa ou omissiva, de conteúdo
conformado pela pretensão subjectiva que reclama. Defende esta Doutrina que, no
âmbito da fruição de bens colectivos, não existem verdadeiros direitos a pretensões
individualizadas, mas interesses de facto, de conteúdo subjectivamente
indeterminável, em razão da inapropriabilidade de tais bens.
Estando em causa o bem jurídico
ambiente, sendo a protecção deste, como defende a LAP no nº2 do seu art.º
1º, um interesse difuso, correspondendo a um interesse juridicamente conhecido
e tutelado, cuja titularidade pertence a todos e a cada um dos membros de uma
comunidade ou de um grupo, não é
susceptível de apropriação individual de qualquer desses membros.
Não é de admitir a Acção Popular
na Intimação nestes termos. A Intimação visa a protecção imediata de um direito,
liberdade e garantia. O ambiente não preenche os requisitos de aplicabilidade
do instituto.
Decisão:
-
Rejeição
pela falta de indicação dos contra-interessados, nos termos do art. 114º nº3 d),
sendo admissível a entrega de novo requerimento, nos termos do art. 114º nº4 e
116º nº3;
-
Falta
de interesse pessoal e directo pelas requerentes, sendo considerados autores
populares para o efeito, por se tratar de interesses difusos;
-
Não
aplicação do meio indicado anteriormente, por o direito do ambiente não
pertencer à categoria de direitos, liberdades e garantias plasmados na CRP
pelos motivos explanados anteriormente;
-
A
acção de intimação não se coaduna com o mecanismo da acção popular.
-
Só
o processo principal será admitido para efeitos de procedibilidade sendo que a alteração
proposta supra fica inevitavelmente prejudicada.
Pelos
fundamentos expostos, o Tribunal decide rejeitar liminarmente a providência
cautelar (artigo 116º CPTA). Custas pelos requerentes.
Lisboa, 12 de Maio de
2012.
Ana Filipa Costa
Ana Maria Pereira
Ana Rita Pereira
Cátia Muchacho
Diogo Ramos
Hélder Correia
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