domingo, 20 de maio de 2012

Parecer do Ministério Público



Parecer nº 350/2012 Processo N.º 0687/12



Exmºs. Srs. Juízes Conselheiros



Aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal compete a apreciação de litígios que tenham por objecto a tutela de direitos fundamentais e direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, nos termos do artigo 4º, nº1, alínea a) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante, ETAF).

Nesta acção, estão em causa direitos fundamentais, bem como, direitos e interesses legalmente protegidos, logo, os tribunais competentes para apreciar a acção em causa são os tribunais administrativos e fiscais.


Compete ao Ministério Público (daqui em diante, MP), nos termos dos artigos 219º da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP) e 1º do Estatuto do Ministério Público, a defesa da legalidade e a tutela do interesse público.

Nos termos do artigo 85º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (daqui em diante, CPTA), o MP pode: solicitar a realização de diligências instrutórias, pronunciar-se sobre o mérito da causa em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos e de interesses públicos e invocar causas de invalidade diversas das que tenham sido arguidas na petição inicial, bem como quaisquer questões que determinem nulidades ou inexistência do acto impugnado.



A acção em questão é susceptível de tutela jurisdicional efectiva, de acordo com o artigo 2º, nº 1 e 2, alínea d) do CPTA, pois aos direitos e interesses protegidos, corresponde uma tutela jurisdicional, que visa obter a anulação dos actos administrativos.

Assim, estamos perante uma acção administrativa especial, nos termos do artigo 46º, nº 1 e 2, alínea a) do CPTA.



A Associação Ambientalista Bode Verde e Associação dos Consumidores de Água de Lisboa, intentaram acção administrativa especial, na modalidade de acção de impugnação de acto administrativo em cumulação com acção de condenação da Administração Pública à não emissão de um acto administrativo lesivo contra a Agência Portuguesa do Ambiente, Em Litisconsórcio Voluntário, nos
termos dos artigos 55º, nº1, al. a) e 9º, nº 2.


  1. Da Providência Cautelar

A providência cautelar visa assegurar a utilidade de uma lide principal, ou seja, de um processo que normalmente, poderá ser longo, porque implica uma cognição plena.

Nos termos do referido artigo 120.º, nº 1, alínea b), as providências cautelares conservatórias são adoptadas "havendo fundado receio (…) da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e não seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular nesse processo ou a existência de circunstâncias que obstem ao seu conhecimento de mérito.”

Estas providências têm como requisitos:

  • Periculum in mora: exige-se para a adopção da providência que haja um fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil recuperação para os interesses que o requerente da providência cautelar quer assegurar na acção principal;
  • Fumus boni iuris: este critério, aparência de bom direito, é decisivo na legislação portuguesa em matéria cautelar. Com efeito, se o requerente de uma providência cautelar conseguir demonstrar a evidência da procedência do processo principal, o juiz deve decretar a providência sem necessitar da prova de outro requisito (periculum in mora). Pelo contrário, caso seja manifesta a falta de fundamento da pretensão do processo principal (fumus malus), a providência cautelar não e decretada, ainda que seja provado o requisito do periculum in mora;
  • Ponderação de interesses: o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso tem a sua marca em sede de tutela cautelar. Com efeito, fora o caso em que seja evidente a procedência da pretensão formulada ou a formular em sede de processo principal, existe um critério de ponderação de interesses envolvidos, por força do qual o juiz decide a concessão da providência mediante a comparação da situação do requerente com a dos eventuais contra-interessados.

Quanto ao primeiro requisito somos da opinião que se verifica perigo eminente para a fauna e para a flora bem como para a qualidade da água que poderão sofrer danos irreparáveis. Quanto ao segundo requisito, encontra-se também preenchido pois como nos iremos pronunciar posteriormente cremos que o fundamento da acção principal é procedente. Por último, o terceiro requisito leva-nos a ponderar quanto ao interesse público em conservar o ambiente e a qualidade da água ou em dinamizar económica e socialmente a zona sendo que assim não haveria lugar à exclusão da providência cautelar pois no nosso entender prevalece o interesse publico invocado pelo requerente.

Todavia, trata-se aqui da protecção do Direito ao Ambiente, art. 60º CRP, sendo este um Direito Económico, Social e Cultural. Por seguirmos a posição doutrinaria do Professor Vasco Pereira da Silva julgamos que do ponto de vista Constitucional e Administrativo todas as posições de vantagem devem ser tuteladas da mesma forma. A distinção das vertentes não faz sentido. O legislador constitucional cria uma lógica dualista entre Direitos Liberdades e Garantias (DLG) e Direitos Económicos, Socias e Culturais (DESC), mas no fim manda aplicar o regime dos DLG a todos os direitos fundamentais. Para Vasco Pereira da Silva não é por analogia que se aplica o regime dos DLG mas sim porque são o mesmo tipo de direitos, não concordando com a distinção feita entre DLG e DESC.
Assim, numa lógica em que os Direitos Fundamentais são um universo em expansão o Direito ao Ambiente é um verdadeiro Direito Fundamental.
É do nosso entendimento que poderia ter sido aqui usada uma intimação para protecção de Direitos, Liberdades e Garantias, presente no art. 109º CPA, uma vez que se encontravam preenchidos os seus requisitos e ao decidir da providência cautelar, por ser um evento de muito curta duração, estar-se-ia já a decidir do processo principal. Tal não pode acontecer pois a providência tem um caracter provisório e como tal o seu processo e requisitos para ser assegurada não assumem as mesmas garantias de um processo principal, que seria aqui inútil.


  1. Da Avaliação de Impacte Ambiental


Ao abrigo do artigo 30º nº1 da Lei de Bases do Ambiente (Lei nº 11/87, de 7 de Abril), “Os planos, projectos, trabalhos e acções que possam afectar o ambiente, o território e a qualidade de vida dos cidadãos, quer sejam da responsabilidade e iniciativa de um organismo da administração central, regional ou local, quer de instituições públicas ou privadas, devem respeitar as preocupações e normas desta lei e terão de ser acompanhados de um estudo de impacte ambiental.”

À luz do seu nº2, as condições em que será efectuado o estudo de impacte ambiental, o seu conteúdo e as entidades responsáveis são regulados por lei.

Essa lei de execução trata-se do Decreto-Lei nº 69/2000, de 3 de Maio, alterado pelo Decreto-Lei nº 197/2005, de 8 de Novembro.

Uma das inovações deste decreto-lei de execução é o carácter vinculativo da decisão, ou como é legalmente designada, “Declaração de Impacte Ambiental” (DIA).

No seu artigo 1º nº 3, sujeitam-se os projectos tipificados ou enunciados no anexo I e II à Avaliação de Impacte Ambiental (AIA, doravante).

Ora, a prática de desportos náuticos através da organização de uma etapa do campeonato mundial de motonáutica não se inclui em nenhum dos projectos tipificados nos anexos referidos.

No entanto, o nº5 do artigo 1º, sujeita ainda a AIA os projectos que sejam considerados por decisão conjunta do Ministro do Ambiente e do Ministro do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território, como susceptíveis de provocar um impacte significativo no ambiente, tendo em conta os critérios estabelecidos no anexo V.

Dada a inexistência da decisão conjunta destes dois Ministros, a avaliação do impacte ambiental não poderá ser exigida pela Associação Ambiental Bode Verde, resolvendo-se a questão do 48º quesito da Petição inicial, referente ao Processo nº 0687/12.

Segundo a opinião do professor João Miranda, a enumeração do artigo 1º, quanto ao ambiento de aplicação do decreto-lei, é taxativa. Ao contrário do professor Vasco Pereira da Silva que defende que a mesma é enunciativa.

Quanto ao 49º quesito, que invoca o artigo 3º do DL nº 69/2000, este apenas é utilizado quando se pretende afastar a necessidade de AIA, não sendo este o caso, dado que nem a lei, nem a decisão ministerial a exigem.

O autor utiliza ainda o argumento do principio da prevenção, consagrado nos artigos 66º nº2 alinha a) da Constituição da Republica Portuguesa e 3º alinha a) da Lei de Bases do Ambiente, de forma a serem ponderadas as possíveis consequências da realização da etapa do campeonato mundial de motonáutica na referida Albufeira (50º quesito).

O Princípio da Prevenção permite evitar ou acautelar possíveis lesões futuras do meio ambiente, ao apreciar autonomamente as repercussões ambientais presentes e futuras de um projecto, num momento prévio ao da forma de actuação administrativa necessária para que tal actuação projectada possa ter lugar.

Além do respeito pelo princípio da prevenção, a avaliação de impacte ambiente é ainda um instrumento de realização dos princípios do desenvolvimento sustentável e do aproveitamento racional dos recursos disponíveis, na medida em que por um lado introduz o factor ambiental na tomada de decisões administrativas, levando à análise e contraposição dos benefícios económicos com os prejuízos ecológicos de um certo projecto, permitindo assim apreciar a sustentabilidade ambiental de uma actividade que pode ser relevante em termos de desenvolvimento económico. Por outro lado, obriga à utilização de critérios de eficiência ambiental, de forma a optimizar a utilização dos recursos disponíveis, na avaliação da actividade projectada.




  1. Da Falta de Acto Autorizativo


Analisando os quesitos 51º a 56º pronunciamo-nos sobre a questão da competência da APA para autorizar o referido evento desportivo. Indo de encontro ao invocado na petição inicial parece-nos que a APA não tem competência para autorizar mas sim para licenciar. Sendo a licença um acto permissivo precário com necessidade de verificações periódicas da eficiência ambiental a si adjacente, uma vez obtida a referida licença a preocupação ambiental não cessa, deve ser constante. Já a autorização seria então necessária e da competência da respectiva comissão de coordenação e desenvolvimento regional, segundo o art. 6º, nº1, da portaria nº783/98 alterada pela portaria 127/2006. As autorizações são actos singulares, praticados pela administração relativamente a indivíduos determinados e reguladores de determinado sector da actividade económica. Assim, tal autorização seria necessária, reforçamos. Cabe-nos no entanto concordar que a mesma não poderia ser concedida, uma vez que no nº2 do mesmo artigo são exigidos dois requisitos e estando o 1º preenchido, o mesmo não se pode dizer do 2º, tal como nos pronunciaremos posteriormente.




  1. Violação da Lei de Bases do Ambiente (Lei nº 11/87 alterada pela Lei nº 13/2002)


O quesito 57º da Petição Inicial refere que a actividade desenvolvida violaria o disposto no artigo 2º, nº 1 da Lei de Bases do Ambiente (doravante, LBA), pois neste artigo é dito que todos os cidadãos têm direito a um ambiente humano e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender, incumbindo ao Estado, promover a melhoria da qualidade de vida, quer individual, quer colectiva. O que nos importa para este caso e que está a ser violado é a última parte do artigo, pois existindo esta etapa do campeonato mundial de motonáutica na Albufeira de Castelo de Bode, não se está a proceder à manutenção de uma comunidade saudável, mas sim a desenvolver cada vez mais poluição nestas águas (nos termos do artigo 21º da LBA, são factores de poluição do ambiente, as actividades que afectam negativamente a saúde, o bem-estar e as diferentes formas de vida, o equilíbrio e a perenidade dos ecossistemas naturais, que é claramente o que está a acontecer neste caso), não procedendo ao fornecimento de águas puras à população como deveria ser feito, visto que abastece três milhões de habitantes.

Quanto ao quesito 58º, para existir um ambiente propício à saúde e ao bem-estar das pessoas, bem como à melhoria da qualidade de vida, têm de ser adoptadas certas medidas, como a manutenção dos ecossistemas que suportam a vida e a preservação do património genético (alínea d) do artigo 4º da LBA), o que não acontece quando se verifica o excesso de poluição nos locais onde as fêmeas desovam, afectando os ecossistemas aquáticos e podendo provocar mutações genéticas nas gerações vindouras, logo está-se a violar o disposto nesta alínea do artigo 4º da LBA. Ainda como medidas que deveriam ser adoptadas temos a conservação da Natureza, o equilíbrio biológico e a estabilidade dos diferentes habitats (alínea e) do artigo 4º da LBA) e a plenitude da vida humana, a permanência da vida selvagem, assim como dos habitats indispensáveis ao seu suporte (alínea n) do artigo 4º da LBA), estas alíneas também estavam a ser violadas, visto que estando a fauna e a flora (artigos 15º e 16º da LBA) a desaparecer, pois a fauna é prejudicada pela redução da quantidade de oxigénio na água e a flora é afectada aquando da emissão de combustíveis na água, produzindo tóxicos que impedem a correcta fotossíntese, pode levar à extinção de espécies locais, como as aves terrestres, os répteis e mamíferos que estão a ver invadidos os seus habitats, estando a ser privados de estar no seu próprio habitat.

O quesito 62º indica o artigo 33º da LBA, este artigo refere que para o exercício de actividades efectivamente poluidoras (como já vimos que acontece, por exemplo, nos quesitos 28º, 30º e 35º) dependerão do prévio licenciamento pelo serviço competente do Estado responsável pelo ambiente e ordenamento de território, logo neste caso a APA apenas autorizou, não tendo emitido um prévio licenciamento, assim não existia licenciamento para exercerem estas actividades na Albufeira de Castelo de Bode.



  1. Da Violação da Lei Da Água
No nosso entendimento estamos perante um valor constitucionalmente protegido, nos termos do artigo 66º da Constituição da República Portuguesa.

Cremos pela procedência do pedido dos Autores, uma vez que se verificam violações constantes a vários princípios consagrados na Lei Da água, bem como regras, que entendemos fundamentais para a preservação do Meio Ambiente.



Analisando os quesitos do 59º ao 61º:

Nomeadamente, no que se refere ao artigo 60º da Lei Da água, relativamente á falta de licenças prévias da utilização privativa dos recursos hídricos do domínio público, no que se refere às competições desportivas e de navegação, bem como às infra-estruturas e equipamentos de apoio utilizados, esta licença deveria ser prévia por se tratar de uma competição desportiva (artigo 59º/2).



Quanto aos princípios alegados pelas partes:

O princípio da dimensão ambiental da água deve ser garantido na sua utilização sustentável (artigo 3º/1, alínea b). Pelo que a realização deste evento deverá ser reconsiderada, a fim de prosseguir o objectivo final da protecção da água.

Por sua vez, esta dimensão protectora deverá interliga-se com o princípio da prevenção e o princípio do uso razoável e equitativo das águas e das bacias hidrográficas.

Entendemos que em qualquer utilização e actividade realizada dentro das águas pelos particulares, deverá sempre ter-se em conta, a razoabilidade com vista a reduzir os impactes e alterações nas águas, bem como a preservar os recursos disponíveis.

Nos termos do decreto-lei 54/2005 de 15 de Novembro, artigo 59º, nº1 e artigo 5º, alínea e), estamos perante a utilização de recursos hídricos do domínio público por particulares.

Posto isto, nos termos do decreto-lei nº 226-A/2007, artigo 1º, é necessário cumprir os requisitos da Lei 58/2001, de 29 de Dezembro. No concernente à actividade de motonáutica, o Decreto-Lei nº 124/2009, de 25 de Maio, correspondente ao Regulamento de Náutica de Recreio, estabelece alguns limites associados a estas embarcações de recreio.

Nos termos deste diploma artigo 59º, nº 2 estamos uma situação que carece de licença prévia para a utilização privada de recursos hídricos do domínio público, contudo sendo uma competição desportiva, o artigo 60º, nº1, alínea i) será imperativo que seja através de licença.

Pelo que consideramos a falta de licença, um vício de invalidade de forma.

Quanto á função estadual, cabe-nos o princípio da cooperação, assente no reconhecimento da protecção das águas.

No entanto, insistimos na arguição de outras normas jurídicas que parecem ser também relevantes na recente acção.

Ainda no âmbito da Lei Da Água, os artigos 18º, 19º/1 e 2 alínea a) e 24º a) e b) referem-se a um ordenamento que deve ser planificado e respeitado, na medida em que existem planos que se reservam à actuação indisciplinada dos particulares no que se refere à protecção e harmonização da gestão das águas com um desenvolvimento regional e político sectoriais.

Deste modo, cremos que é papel fundamental da Administração Pública, o dever de tutelar este tipo de situações infractoras, prevenindo-se assim, os efeitos negativos sobre o Ambiente e, em especial, sobre as Águas.





Lisboa, 18 de Maio de 2012



Os Procuradores-Gerais Adjuntos do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República,



Alexandre Antunes dos Santos

Ana Maria Costa

Ânia Vaz da Conceição

Daniela Cunha

Mamadu Saliu Djaló

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